quinta-feira, 18 de setembro de 2008

Joana, outra vez

Dos posts anteriores e da falta de grana que me faz ficar em casa lendo livros ao invés de "curtir a vida":

O fim de tarde lá fora nos galhos verdes. Os pombos ciscavam a terra solta. De quando em quando vinha até a sala de aula a brisa e o silêncio do pátio de recreio. Então tudo ficava mais leve, a voz da professora flutuava como uma bandeira branca.
- E día em diante ele e toda a família dele foram felizes. - Pausa - as árvores mexeram no quintal, era um dia de verão. - Escrevam em resumo essa história para a próxima aula.
Ainda mergulhadas no conto as crianças moviam-se lentamente, os olhos leves, as bocas satisfeitas.
- O que é que se consegue quando se fica feliz? sua voz era uma seta clara e fina. A professora olhou para Joana.
- Repita a pergunta...?
Silêncio. A professora sorriu arrumando os livros.
- Pergunte de novo, Joana, eu é que não ouvi.
- Queria saber: depois que se é feliz o que acontece? O que vem depois? - repetiu a menina com obstinação.
A mulher encarava-a surpresa.
- Que idéia! Acho que não sei o que você quer dizer, que idéia! Faça a mesma pergunta com outras palavras...
- Ser feliz é pra se conseguir o quê?
A professora enrubraceu - nunca se sabia dizer por que ela avermelhara. Notou toda a turma, mandou-a dispersar para o recreio.
O servente veio chamar a menina para o gabinete. A professora lá se achava:
- Sente-se... Brincou muito?
- Um pouco...
- Que é que você vai ser quando for grande?
- Não sei.
- Bem. Olhe, eu tive uma idéia - corou.
- Pegue um pedaço de papel, escreva essa pergunta que você me fez hoje e guarde-a durante muito tempo. Quando você fôr grande leia-a de novo. - Olhou-a - Quem sabe? Talvez um dia você mesma possa respondê-la de algum modo... - Perdeu o ar sério, corou. - Ou talvez isso não tenha importância e pelo menos você se divertirá com...
- Não.
- Não o quê? - Perguntou surpresa a professora.
- Não gosto de me divertir, disse Joana com orgulho.
A professora ficou novamente rosada:
- Bem, vá brincar.
Quando Joana estava à porta em dois pulos, a professora chamou-a de novo, dessa vez corada até o pescoço, os olhos baixos, remexendo papéis sobre a mesa:
- Você não achou esquisito... engraçado eu mandar você escrever a pergunta para guardar?
- Não, disse.
Voltou para o pátio.


"Perto do coração selvagem" - Clarice Lispector. Ed. José Olympio, 5a edição. 1974

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